Sexta-feira da Paixão. As pessoas enfileiram-se em procissão. Encenações revivem o
drama da paixão e morte de Jesus Cristo. Penso... em Deus, no mundo, nas
pessoas, nas máscaras, na repressão, na hipocrisia, na alienação.
Vejo
as pessoas enfileiradas. Posso até imaginar o que cada uma pede a Deus. Que
cure a doença de alguém da família, ou, quem sabe, da família toda; arrume um
emprego para algum, ou para todos; ajude a arrumar o dinheiro para pagar o
aluguel (pedir casa própria, não, isto
já é exigir muito de Deus ); que não falte comida; que arrume um namorado que
tenha dinheiro, que seja trabalhador, que queira casar; que o marido deixe de
beber, e veja que aquela mulher por quem se enrabichou não passa de uma
“exploradora”.
Madalena
canta. Naquele dia fiz REFLEXÃO. Foi um momento que antecedeu a tantos outros,
em que me perguntei:
-
Será Deus um julgador? São as injustiças sociais desígnios de Deus para salvar
os pobres? “Bem-aventurados os pobres de espírito”, “Bem- aventurados os que
choram...” Mateus, 5-3,5.
Constitui
a religião um meio de contenção das massas? É a religião (não confundir
religião com Deus) também um processo de condicionamento? Ah! “Admirável Mundo
Novo!” Ficção ou realidade? A razão não está com Aldous Huxley? * “As pessoas
mal adaptadas à sua posição tendem a alimentar pensamentos perigosos sobre o
sistema social, e a contagiar os outros com seus descontentamentos. Um Estado
totalitário verdadeiramente eficiente seria aquele em que o executivo
todo-poderoso de chefes políticos e seu exército de administradores
controlassem uma população de escravos que não tivessem de ser coagidos porque
amariam a sua servidão (...) O amor à servidão não pode ser instituído senão
como fruto de uma profunda revolução social nas mentes e nos corpos humanos
(...) a realidade (...) é algo de que as pessoas precisam tirar férias com
bastante frequência (...). O problema da felicidade, em outras palavras, o
problema de fazer com que as pessoas amem a sua servidão.” **
Acrescento
eu:
-
Que as pessoas aceitem o sofrimento, a pobreza e outras infelicidades como
processos de expiação e obtenção de uma salvação eterna, um paraíso só
destinado aos que sofrem.
O
culto às fórmulas, aos rituais, a repetição de frases feitas, a adoção de
ideias e conceitos preestabelecidos, sem qualquer significado prático na vida
de quem os adota, não pode resultar em crescimento.
Vasto
é o entendimento de que o crescimento espiritual só se adquire através da
leitura da Bíblia, da frequência aos cultos religiosos, da repetição de tradicionais
orações. Será correto esse entendimento se a espiritualidade consiste
exatamente no desenvolvimento da capacidade de raciocínio, do pensamento
consciente?
Acredito
que muitas pessoas buscam na religião uma fuga. Ajustam-se, calam-se,
submetem-se. Tudo em nome de Deus. Quando, penso eu, deveria representar a
religião uma força contra tudo aquilo que a própria crença estabelece como
valor social, ético ou moral. Por isto penso:- Aquele que se dispõe a viver
segundo as lições de Deus deve, antes de tudo, ser justo, e quem é justo não
pode concordar com a injustiça. Deve ser verdadeiro, portanto, não concordar
com a mentira; deve ser leal, não concordar com a deslealdade; deve ser puro de
sentimentos, não concordar com a promiscuidade; deve acreditar na igualdade das
pessoas, portanto não aceitar a discriminação; deve acreditar na liberdade, não
concordar com o servilismo e a submissão. Deve acreditar no amor, não concordar
que em nome dele, sua individualidade e integridade física e/ ou mental sejam
violentadas.
Penso
que Deus é demais explorado e pouco respeitado.
Desrespeitamos
a Deus quando desenvolvemos a capacidade de enganar ao próximo; quando tolhemos
a liberdade do outro; quando castramos e limitamos o crescimento pessoal do
outro; quando julgamos e condenamos; quando aceitamos a mentira, a hipocrisia,
o desrespeito, e com eles nos pactuamos para a manutenção de um “statu quo”;
quando não temos cuidado com a natureza; quando discriminamos o trabalho braçal
e consideramos inferiores as pessoas que o executam. Desrespeitamos a Deus,
quando em nome Dele, nos calamos diante das injustiças e violências praticadas
pelos homens.
* Romancista e ensaísta inglês, autor de
“Brave New World”, (Admirável Mundo Novo).
** Admirável Mundo
Novo- Editora Círculo do Livro – p. 12/13.
REFLEXÃO
Século
XX...
Erotismo que provoca,
Sufoca...
domina.
Ciência avançada...
Tecnologia que dá
A
razão das coisas.
Exatas,
provadas.
HIPOCRISIA...MÁSCARA
Cobrindo
as faces aniquiladas
De
quem não quer ser outro Cristo.
LIBERDADE...REBELDIA.
Aspiração
latente de quem
Não
tem coragem de protestar,
Porque
...
É
crime político.
Século
XX...
O
meu século!
Será
que trago
Neste
espectro ósseo
O
erotismo?...
E
dentro desta cabeça
Confusa
A
ciência,
A
liberdade recalcada?
E
a máscara,
Nesta
cara, a hipocrisia?
Será
que sou
A
mesma máquina ambulante
Na
mesma escola do pensamento,
Nas
mãos dos mesmos maquinistas?
Eu,
máquina?
Manejada
Ligada...
desligada,
Estragada...
consertada,
Desprezada,
Quando
não mais utilizada?
Mas...
e o Cristo?
Veio
de fato?
Veio
para me fazer
Um
aparelho?
Os
homens também
Fazem
aparelhos.
Veio
para o seu século
Ou
também para
O
nosso século?
Veio
para os antigos gregos e romanos
Ou
veio também para os nossos homens?
O
Cristo...
Nasci
num mundo de palavras.
Custa-me
a acreditar que Ele veio.
Não
consigo vê-lo no cinismo,
No
gosto pela humilhação.
O
Cristo permanece,
Numa
caricatura
Deformada...
torta.
Madalena
não o reconheceria.
O
Cristo... Ele veio? Abala-me a fé.
O
que me levaria a crer
Se
aqueles que o fazem
Se
empenham na guerra,
No
ódio?
Se
todos vivem
Como
máquinas engrenadas
Na
fábrica comercial
Do
mundo?
Maria do Carmo Marinho
*Reflexão foi escrito quando
eu tinha 19 anos .
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