segunda-feira, 28 de março de 2016

FALSO RETRATO




          
Chego em casa. Descrente, revoltada. Nas veias ferve-me o sangue. Custa-me controlar o impulso de jogar tudo para o alto. De qualquer jeito. Abro a gaveta. E quem eu encontro? Você. Numa fotografia. Olhos fechados, barba crescida, cabelos desgrenhados. Os cantos da boca para baixo. Imensamente triste. Não gosto de vê-lo assim. Não combina. Você que veio para redimir, para ensinar o amor, o perdão e a justiça, não pode ser assim. Gosto de vê-lo de outra forma. Como você realmente foi. Alto astral, bonito, alegre. Nem mesmo a superficialidade e a mediocridade dos homens teriam a força suficiente para apagar o seu sorriso ou contaminar a sua alegria. Não se pode entristecer quem se sabe justo, verdadeiro e capaz de amar com o amor que amou aos homens que, sabia, não eram merecedores. Egoístas, incompreensivos, orgulhosos, superficiais. Você, na sua infinita sabedoria, amou-os exatamente por acreditar que quanto menor a criatura de mais amor ela precisa. Por ser assim sei que você nunca foi triste. Esta cara não combina com você como não combina comigo a cara que estou agora. Sou partícula no universo dos homens. Toda a minha capacidade de amar não chega nunca a nível comparável ao seu. Sou hipersensível. Fico magoada mesmo quando sei que as pessoas são pequenas e imperfeitas. Aí está uma das minhas imperfeições. Peço-lhe que perdoe àqueles que pintaram você com esta cara, como perdoou àqueles que o mandaram para a cruz. Do mesmo modo que o crucificaram porque não sabiam o que faziam, assim o retrataram porque também não o conheciam.


                                Maria do Carmo Marinho

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