31dezembro de 2018. O
ano se despede. Lá se vão as últimas horas. Uma chuva miúda nos presenteou
durante quase todo o dia. Gosto de chuva, quando penso que ela traz vida,
alimentando os rios, os lagos, garantindo o sustento da humanidade. Gosto da
chuva que é vida. Mas, também ela, como tudo na vida, possui dois lados. Guilherme Arantes, em sua
belíssima canção “Planeta Água”, muito bem lembra que “gotas de água da chuva,
tão tristes são lágrimas na inundação”. E outra canção, cujo autor eu desconheço, que cantávamos na
escola, diz:
“Para mim, a chuva no telhado é
cantiga de ninar, mas, o pobre, meu irmão, para ele a chuva fria vai entrando
em seu barraco e faz lama pelo chão”. Hoje estou mais introspectiva que de
costume. Decidi ficar em casa, comigo, sem buscar alternativas para preencher
um vazio que não se preenche com alardes de comemorações. Finda-se um ano. Começa-se outro. Fim e começo são lados
de uma mesma moeda. O fim traz consigo um ponto final. O começo uma
interrogação. Porém, em se tratando do tempo em que se concentraram nossos
projetos, nossos problemas reais, nossos erros, nossas conquistas, nossas
alegrias e tristezas, nossas dúvidas e incertezas, perdas e ganhos e os
daqueles que nos cercam, o fim do ano não é o ponto final. Quem dera fosse mesmo um ponto final! No dia 1º de
janeiro, acordamos e “ tudo está no seu lugar, graças a Deus, graças a Deus, Não devemos esquecer de dizer graças a Deus, Graças a Deus". como canta Benito de Paula .
Voltando à minha introspecção, a solidão e o tempo chuvoso aguçaram meus
pensamentos e meus sentimentos. Colocaram em confronto as Marias que vivem
dentro de mim. A racional, sensata, que
põe a ética em primeiro lugar, que pondera,
que avalia consequências, que pensa em si e nos outros, que busca
resultados positivos. Para a Maria Razão, a vida é um desafio constante.
Questiona regras que cerceiam e que desconsideram as individualidades, que
massificam e colocam as pessoas dentro de um quadrado maniqueísta, com placas indicativas
“CERTO”, “ERRADO”, num processo mnemônico condicionante e massificador. Maria
Razão vive em batalha constante com a Maria Emoção. A primeira pisa em terra
firme porque precisa se sentir livre para transitar sem medo de tropeços, de
embaraços, e com o olhar sem nuvens de ocultação. Tem medo de condenação. Não
agride a rigidez da sua consciência. A segunda, ah, a segunda... É entusiasmada,
calorosa, e se delicia com o prazer de sentir prazer. Prazer de mergulhar numa água fresca e cristalina; prazer de dançar, ah, como é bom embalar-se numa música lenta ou agitar-se num ritmo frenético! Prazer de ouvir música, a romântica, que toca o coração, a transformadora, que faz pensar; O prazer de me sentir amada e admirada pelos meus filhos, pela minha neta e por pessoas que tive o prazer de conhecer e conviver; Pelo prazer de abraçar. Como é gostoso abraçar! Pelo prazer de contemplar o céu, com suas nuvens sempre em movimento, com suas estrelas brilhantes, com sua lua sempre calma e serena e com o sol, que aparece com suas cores exuberantes e que desaparece, levando estas cores, não sem antes exibi-las num espetáculo indescritível, que é o crepúsculo. Prazer de contemplar as árvores, a relva, as flores que desabrocham, mesmo estando sozinhas, sem ninguém para admirá-las; prazer de ver e conviver com pássaros, fornecendo-lhes água e alimento, pássaros que cantam, não se importando se alguém vai ouvir; prazer de ouvir o canto das cigarras, que, a partir do primeiro solo vão se juntando e formando uma orquestra espetacular de sons, escondidas entre as folhas ou agarradas em algum tronco, sem se importarem com plateia; Prazer de ler, de guardar livros, de conhecer personagens que se apresentam sem máscaras, que escancaram seus sentimentos mais escondidos, porque estão protegidos pelas páginas. Só os descobre que tem o desejo de conhecê-los. Prazer de escrever, de expressar meus sentimentos, meus questionamentos, minhas inquietações e exorcisar meus demônios. Dentre tantos prazeres o prazer de sentir minhas emoções de mulher, de fêmea; De sentir os prazeres do corpo que devem estar sempre aliados aos prazeres do coração. Prazer do toque, da carícia, do afago. Prazer de amar. Além de todos estes prazeres e outros aqui não falados, a Maria Emoção gosta de viver e expressar bons sentimentos;
de criar fantasias de contos de fadas; de amar com amor de filme, sem censura,
de emocionar-se com o afeto e a gratidão e comover-se com o sofrimento e a
miséria humana. Enquanto a razão aprisiona a emoção liberta. A razão é
proibitiva, tem suas razões e não se
permite transigir. É um “NÃO”, sem conta. “Não pode”, “não deve”, “não vá”,
“não faça”, “cuidado”! A emoção, por outro lado, é permissiva e inconsequente.
“Vá”, “faça”, “seja feliz” “você pode” “você merece”. Razão e emoção. Duas
forças imperiosas que habitam dentro de mim e de muitas pessoas que, assim como
eu, vivem sufocadas, interferindo negativamente até no processo da respiração.
As pessoas vivem se sufocando, procurando adaptar-se a normas anormais
castrantes e cerceadoras do direito de viver. O Dr. José Ângelo Gaiarsa, médico
psiquiatra, que nasceu em Santo André, no dia 19/08/1920 e faleceu em 16/10/
2010, e que apresentou, de 1983 a 1993, o quadro "Quebra- cabeça," no programa
Dia-a Dia, exibido pela Rede Bandeirantes de Televisão, muito bem expressou
sobre esta situação, em seu poema, constante de sua obra " Respiração Angústia e Renascimento." Transcrevo
alguns trechos. “... Nós nos negamos o mais fundamental dos direitos – o de
viver. Por isso vivemos sufocados-angustiados-infelizes.”... “Porque todos
vigiam a todos, para que ninguém faça o que todos gostariam de fazer, o que
seria bom que todos fizessem. Amar, cantar e dançar... Minha vingança é fazer o
mesmo com você...” Paro. Penso... concluo: que pena! Mas a realidade é esta. Maria Razão está com a razão.
Maria do Carmo Marinho